A origem das coisas

O professor de matemática diz que a origem é geométrica: curvas e contra-curvas, segmentos circulares, rectos, quadrados, perpendiculares, circularidades redondas ou curvilíneas a emitar os astros e os planetas, tudo a emitar tudo, tudo reproduzido infinitamente, filhos e filhas do primeiro pai e da primeira mãe. Para não esquecermos o Deus que nos formou: isso seria sacrilégio da mais grave inconsciência. O cirurgião que estudou a miúdo o âmago de todas as moléculas que compõem o corpo humano afirma que tudo está na mais pequena partícula: o ligamento que liga, a coisa mais minúscula que não se enxerga a olho nu mas que é o fundamental fundamento que nos guia — a origem dos passos que damos, o movimento certo ou incerto de acordo com a disposição que o dia nos deu, o timbre da voz, a retina do olho, a curva do dedo mindinho, a gota de sangue que viaja impulsionada pelo coração até ao cérebro que depois pensa, reflete, ilucida, pondera. A minha avó reclamava outra teoria, certa que esta era a mais certa, a única, a verdadeira: clamava em voz alta e afectada, possuída pela poética da filosofia funda, que a origem das coisas, de tudo e de todos, estava claramente espelhada nas mantas que ela fazia. Eram mantas coloridas, novas, tecidas no seu velho tear, com roupas rotas que já ninguem queria usar por vergonha de lhes chamarem pobres. Clamava em voz alta, firme e grave, que sim, que a vida, a origem de tudo e de todos, estava aí espalhada. Só quem fosse cego, não veria.

— Irene Marques, Poema publicado em Poetas lusófonos na diáspora - Antologia - III Volume. Oxalá Editora, Europress: Dortmund/Germany, 2020. https://www.oxalaeditora.com/livros/poetas-lus%C3%B3fonos-iii-antologias/