O segredo de Omaina Reinaldo e de Isabel Allende

Conheci-o numa altura muito espectacular. Foi ao morrer do dia mesmo antes daquela hora, aquela hora quando tudo se apaga no céu para que desça sobre nós a claridade que o dia largo e aberto de alto julho não nos conseguiu proporcionar com toda a sua glória e aberta luz trazida pelo sol ardente do alto verão. Omaina Reinaldo era um homem, um homem que tinha visto o que eu não desejaria nunca a ninguém. E o que ele viu, e que depois me contou naquele anoitecer de alto julho em pleno verão. quando me apareceu ao fim da carreira estreita que levava ao fundo do vale por onde eu tantas vezes tinha com o gado enveredado para chegar à relva mimosa da Malhada do Salgueiro, o que ele viu e depois me contou, esse pedaço de miséria humana, que começa lindamente como uma sublime canção de rosário, tal reza de milénios invocada, o que ele viu e depois me contou foi o seguinte:

Era uma vez uma menina chamada Vânia. Vânia vem do russo antigo. Vânia quer dizer “presente de Deus.” Vânia era irmã de Valentina. Valentina vem do latim. Valentina significa “boa saúde.”  Valentina era irmã de Valéria. Valéria vem do francês antigo, de uma palavra que quer dizer “valor.” Valéria era irmã de Valquíria. Valquíria vem da língua escandinava. Eram três Valquírias, três deusas bonitas, irmãs de índole que transportavam as mensagens do deus mais importante, esse deus que se chamava Odim. As Valquírias tinham outro trabalho muito sublime: transportavam para o Walhalla, que era a sagrada e celestial habitação dos grandes heróis mortos em batalha, os corpos inertes e nobres dos guerreiros mortos em leal e fiel combate. Valquíria era irmã de Vanessa. Vanessa, como Valentina, vem do latim e quer dizer aquilo que todos nós tentamos ser: “borboleta.” Borboleta para voar, voar alto acima da miséria lamacenta que os homens criaram e que nos prende como cadeados de ferro ao vil e desgraçado destino. Vanessa, como Valentina, era irmã de Vera. Vera vem do latim. Vera quer dizer “verdade.” Vera era irmã de Verónica. Verónica também vem do latim. Verónica quer dizer “semelhança verdadeira.” Diz-se que ela, esta Verónica, seguiu Cristo até ao Calvário, limpando a sua face em sangue e suor afogada com o seu próprio lenço, ficando a imagem de Cristo gravada nesse pano que depois virou relíquia verdadeira, pano sagrado, provando pois que nada é sagrado por natureza, que o sagrado nasce aquando da acção que se empreende. Um tesouro como tantos outros que a Igreja depois insistiu em mostrar ao mundo inteiro como prova do milagre, o milagre que trouxe Deus à terra em carne e osso e fez com que ele, em nome de todos nós, e para erradicar o mal que nos guiava, se deixasse condenar e morrer em agonizado sofrimento pregado na cruz sangrenta como anjo abandonado e seminu sem mãe nem pai que lhe valessem. Mas de nada valeu.

De nada valeu pois que Isabel Allende bem nos conta a sua história sobre a curta vida e desgraça de Omaira Sánchez. Omaira era uma menina de treze anos, uma menina colombiana de cabelos muito negros, negros como um belo cavalo que corre em plena abertura desimpedida pelo vale afora, tal borboleta em natural movimento, criatura que sabe profundamente que a vida não é senão um grande céu para se voar. Omaira era irmã e prima de todo o mundo que a viu morrer em agonia durante três inteirinhos dias, noite e dia, minuto a minuto, o tic tac tic tec do endiabrado e incontrolável relógio do tempo. Irmã dos que a rodeavam com câmaras de filmar sobrevoando a sua vida em seguro helicóptero. Irmã dos homens e das mulheres que escreviam sobre a sua triste sina levando a sua vida para todos os quatro cantos do mundo, fazendo com que a cor dos seus cabelos e dos seus largos olhos se tornasse visível à menina íntima de todos os habitantes do nosso planeta, pelo menos aqueles que estavam com os olhos abertos e conscientes e que andavam neste mundo por causa cabal e não porque para aqui foram atirados sem mais nem menos, ao calhas, ou ao Deus dará, como dirão os mais religiosos. Irmã daqueles e daquelas que tanto se identificavam com a sua dor pois que esta dor era aliás a dor do seu grande desastre humano, esse absurdo desastre que nos leva a nada fazer ficando como que pardos mudos surdos a observar o desastre que se não criámos, bem poderíamos evitar se para aí estivéssemos alertados, ou pelo menos impedir que chegasse até ao fim mais desastroso. Mas é como se acreditássemos que Deus não é cego, contrariamente ao que nos diz o José Saramago, pois a verdade é que ele é mesmo cego como eu vim a constatar depois de ter visto Omaira desfazer-se desta vida, devagar muito devagarinho, e acabar com o sol que depois de se estender o mais possível não tem outro remédio que deixar-se ir deste sítio para outro, que aliás nem se sabe se é ou não melhor do que este.

Esses pardos surdos e mudos que observaram a morte vagarosa e tão dolorosa daquela menina na sua flor da idade que se afundava na lama negra que tanto a queria comer, esse desventrar do centro da terra que foi a avalanche de1985. Esses homens e mulheres prontos e ansiosos para escreverem a triste sina da menina que poderia ter vivido, poderia sim pois como pode o governo insistir que não tem meios aéreos para resgatar a pobre criatura quando por cima da desgraça sobrevoam helicópteros como abutres esfomeados por histórias de desgraça? Como, Como? E depois ainda dizem que Deus não é cego. É cego sim senhora, tão cego que se te deitares ao sol à espera que chova vais constatar que a chuva nunca chegará. A única maneira da água chegar é tu levantares-te e cavares um jardim e então, então, depois desse teu esforço supremo de ser humano e divino, a chuva vai cair, vai cair em jactos mansos e espaçados para que a semente que tu plantaste na outra estação emerja alta e orgulhosa de ser desta terra e deste mundo. Karma em pleno testemunho. 

Mas eram todos uns surdos-mudos, pardos mais parvos que deuses cegos com a faixa em frente dos olhos e que não podem nada ver, como nos diz Saramgo no seu grande ensaio sobre a cegueira. Habituados que estavam a pensar dentro de quartos tão compartimentados tinham perdido a capacidade de ver as coisas de um modo inteiro, de vê-las belas e acabadas por uma só mão como faziam os antigos sapateiros quando na sua oficina se dedicavam à criação solene de sapato e sandália da mais alta qualidade, e depois de completar a sua obra se punham a observar o produto e diziam sem se poderem conter, em voz alta e alegre, aquele alegre de pessoa que possui a razão de ser da vida: “Esta relíquia fui eu que a criei. Antes de eu a ter pensado ela nem sequer existia. Foi o meu puro pensamento seguido da habilidade das minhas mãos que levou à sua sublime execução. E agora ao olhá-la fico assim com o peso da existência em cima de mim. E assim a minha vida faz sentido, faz todo o sentido necessário. Antes disto o que havia era um vácuo insuportável que me matava dia a dia e deixava a razão desencontrada.”

O segredo do sapateiro é o que faltou àqueles e àquelas que observaram a Omaira Sánchez desfalecer. Contrariamente a estes e estas o sapateiro antigo sabia que para construir o sapato e sentir a união total com a coisa que construia teria ele próprio que partir do ponto zero: criar a vaca, lavrar a terra para alimentar a vaca, matar a vaca mesmo que muito amor por ela sentisse, esfolá-la depois, lavar a pele bem lavada, secá-la e depois daí desse ponto imaginar o modelo da sandália, passá-lo para o papel e depois ainda passar do desenho do papel, que era um modelo ainda não transformado em coisa de veras, ao factual sapato. Este é o segredo do sapateiro e o segredo da ideia que está por detrás da história de Isabel Allende sobre a pequena Omaira. Este é também o segredo que nos diz, de uma maneira ou outra, que a Omaira é irmã cabal de Vânia mesmo que a primeira tenha nascido na Colômbia e a segunda na Rússia. Por outras palavras, devemos olhar para o mapa do mundo como se olha para o mapa dos nomes: o Brasil é irmão dos E.U.A., a África do Sul é irmã da Namíbia e de Angola embora se encontre na primeira muitos sofredores (negros e brancos) de xenofobia.

O que não devemos fazer em nome das especialidades de profissão, raça e neutralidade de alguns países, é olharmos em silêncio mudo para a desgraça que se desenrola diante de nós como se meros operários de fábrica fossemos, operários que nem sequer são capazes de pressentir como será o sapato na sua fase final tão alienados que estão deles próprios e dos que a eles de facto pertencem. Como é que um jornalista pode observar a morte de uma criança sem querer ajudá-la a sair do caminho da morte? Como é que um helicóptero pode sobrevoar por cima de uma menina de treze anos que morre devagarinho engolida pela lama e dizer que não, que não, que há protocolos a seguir, protocolos que nos protocolam? Uma menina de olhos e cabelos negros, negros e muito muito enleados, tão enleados que me aparecem todas as noites a altas horas quando no silêncio fundo quero entrar para cair na planície do vale lânguido e alastrado, tão alastrado como o vaso de Deus que um dia me foi dado a ver quando em distraída visão me submeti ao calor da corrente. Esses cabelos e esses olhos agora vazados em todos os cantos e recantos do mundo, como as almas perdidas dos Malay da África do Sul que percorrem a largueza daquele país clamando e chorando perdão como já invocou Thabo Mbeki no seu grande poema, perdão por favor, perdão meu amor. Esses cabelos e esses olhos que em mim se enleiam atafegando a minha serena existência e fazendo com que eu não tenha descanso e te apareça agora aqui neste fim de carreira neste fim de dia à procura do perdão.

Mas como perdoar a maldade dos que não fizeram nada para evitar a nossa morte? Como perdoar à cobra mamba-negra que voou sobre a menina e não teve a alma de lhe dar a mão para que ela pudesse sair daquele lamaçal que a engoliu remetendo-a em desgraçada precocidade ao pardo e medonho anónimo? Como é que esse helicóptero, que poderia salvar a menina, pode manter-se neutro insistindo em manter a especialidade da profissão? Como é que o governo que nos governa pode esquecer-se dos protocolos fundamentalmente humanos e invocar a falta de meios de salvamento quando a hora mais necessária aparece a pedir ajuda, ajuda que se está a morrer, ajuda por favor, ajuda meu amor. Como? Como?

Estas são as perguntas lancinantes como grito de ave nocturna em cata do salvamento que acabam o relato de Omaina Reinaldo, que era um primo afastado de Omaira Sánchez e que me aparece ali no fim da carreira que sempre me encaminhava para o fundo do vale onde estavam as relvas mimosas da Malhada do Salgueiro, aparece-me ali ao pôr-do-sol naquele dia de alto Verão de Julho, aparece-me mesmo antes do pardo intenso que segue o incendiado rubro que é o pôr-do-sol, essa grande grave imagem que anuncia a larga beleza do dia que acabou e a vasta possibilidade da noite que aí vem. Acaba o seu relato e depois antes que eu possa responder-lhe qualquer coisa, ou que tenha tempo de perceber o que ele pretendia ao contar-me aquela história muito cheia de folheados que era infelizmente muito verdadeira, desaparece de repente tal como tinha aparecido, um milagre cheio de segredos. E a última visão que tenho dele é o seu cabelo negro e a escuridão insondável que lhe assalta a menina dos seus olhos. O segredo de Omaina Reinaldo e Isabel Allende.

Um helicóptero a olhar uma menina, sobrevoando por cima da intensidade dos seus cabelos e olhos negros, alheio ao profundo enleado da vida humana, tal ave de rapina à espera que a morte chegue para depois continuar a viver com o peso da vida dos outros, gordo de sofrimento. Um obeso impossível de se manear em alegre e leal movimento pela beleza do mundo fora. Todo um vasto mundo a olhar aquela menina de cabelos muito negros. Todo um mundo boquiaberto de pasmo e terror. E doentia inércia que não sabe como salvar uma vida. Um mundo sequioso de saber notícias de uma garota colombiana que morre, sequioso de beber a dor que existe na menina dos olhos dela, essa menina que lhe entra em vagarosa e sadista dose. Fotografia viva que lhe entra em cheio na sua alma dormente. Um mundo ávido por notícias da desgraça que entra na vida dos outros extinguindo-a debaixo da lama parda que leva aos confins malditos. O segredo de Omaina Reinaldo e de Isabel Allende. E depois também passado a mim.

— Irene Marques, Versão abreviada de uma história publicada em Habitando na metáfora do tempo (Edium Editores, 2009) https://www.bertrand.pt/livro/habitando-na-metafora-do-tempo-irene-marques/10281103